Não aprendemos, ainda, a valorizar o que Portugal tem de melhor, nem dar a estabilidade, tão aclamada por todos, às políticas públicas, mesmo que estas traduzem uma evolução civilizacional, a expressa vontade popular e o suporte para o desenvolvimento e reconhecimento do país.
Está atualmente em revisão no parlamento a Lei 31/2009, que estabelece a qualificação profissional exigível a todos agentes do setor da construção em Portugal, incluindo projeto, fiscalização e direção de Obra.
Esta lei teve duas características que a tornam única e exemplar no contexto legislativo português.
A primeira é que teve na génese a primeira, e única, Iniciativa Legislativa Dos Cidadãos em que mais de 45.000 portugueses subscreveram uma petição pública, “Direito à Arquitectura”, solicitando que o parlamento legislasse no sentido de revogar o Dec-Lei 73/73, reservasse a “atividade de arquiteto aos arquitetos”, e contribuísse para “a regulação imprescindível de um sector de atividade de importância vital para o país.”
A segunda característica desta lei é que acolheu um amplo consenso da sociedade, das várias associações e dos seus profissionais, e dos diversos partidos políticos, tendo sido aprovada com os votos favoráveis do PS, PSD, CDS, e Bloco de Esquerda, com a abstenção apenas do PC/PEV, e sem nenhum voto contra.
Em representação da Ordem dos Arquitectos, participei no grupo de trabalho que acompanhou este processo legislativo e testemunhar o apreço coletivo, de legisladores e sociedade civil, com esta importante lei.
E por isso não posso deixar de estranhar, eu e muitas outras pessoas, que passado apenas 5 anos da sua aprovação, e terminado agora o período transitório, sem que tenha sido detetado nenhum mau funcionamento inadaptabilidade da lei à prática, que surja a iniciativa de rever a referida lei. Iniciativa esta que suscita muita apreensão, tendo já resultado numa segunda petição popular, contra a revisão em curso, e nos últimos tempos numa enorme turbulência nas redes sociais.
A tão necessária estabilidade das políticas públicas é fundamental para conseguir manter uma estratégia consistente e persistente para o desenvolvimento do país. Todavia, e apesar de reconhecida por uma grande parte dos agentes políticos, sociais e económicos, esta estabilidade tem sido difícil de se conseguir.
Este é, infelizmente, um exemplo dessa falta de estabilidade nas nossas políticas públicas. Como poderá o poder político que votou favoravelmente a esta lei que tanto consenso gerou, vir em tão pouco tempo propor a sua alteração? Que sinal dá o legislador aos cidadãos que tiveram Iniciativa Legislativa, que viram as suas pretensões acomodadas na lei, e que agora assistem à sua alteração sem justificação aparente?
A Arquitetura Portuguesa tem hoje um enorme reconhecimento internacional. Um reconhecimento pela qualidade das suas faculdades, pela preparação e mérito dos seus profissionais, mesmo os mais jovens que ganham frequentemente concursos no estrangeiro, e da excelência profissionais mais experientes que conquistaram os mais altos e reconhecidos galardões mundiais.
Apesar de sua pequena dimensão geográfica, Portugal tem hoje dois arquitectos, Siza e Souto Moura, ambos prémios Pritzker’s, entre os melhores do mundo.
Este reconhecimento não é só internacional, é feito também pela sociedade portuguesa, a petição “Direito à Arquitectura” é disso um exemplo, assim como as inúmeras exposições atraem sempre tanto público.
A arquitetura a partir do seu prestígio tem levado a engenharia portuguesa e as nossas empresas a atuarem noutros territórios, e a irem mais longe nas suas realizações. O sucesso acontece quando existe respeito entre as partes e um frutuoso trabalho em equipa com a coordenação natural do projeto feita pelo arquiteto. Essa foi a chave do sucesso para as boas obras nas últimas décadas.
Da Assembleia da República, órgão que muito respeito e a quem cabe legislar com independência, imune às pressões corporativas, e com a capacidade de interpretar a vontade dos cidadão que a elegeu, espera-se que, de uma vez por todas, em nome da estabilidade das políticas, venha definir se devem, ou não, outros profissionais realizar os atos próprios de arquiteto.
É importante que, de uma vez por todas, sem recurso a redações esguias ou de dúbias interpretações, sem subterfúgios legais ou escudados em normativas europeias mal transpostas ou apenas partes dela, o legislador diga, com clareza, se pretende alterar nesta revisão o sentido da lei 31/2009 que tanto consenso gerou na sociedade.
É também importante que com transparências as forças políticas que votaram favoravelmente a lei em 2009 venham explicar as iniciativas de alterações por si propostas.
Acredito que, no final deste processo, o interesse público seja salvaguardado. Assim espero, com confiança no bom funcionamento das nossas instituições e respeito pela vontade popular.
Este artigo foi escrito por Nuno Sampaio, presidente da Estratégia Urbana – Laboratório de Inovação, e publicado originalmente no jornal Público.pt em março deste ano. Por decisão editorial, foi mantida a escrita original em português europeu.